“Sem afectos
não vale a pena sermos grandes sábios” – afirmou sexta-feira, em Braga, o prof.
Francisco Moita Flores, parafraseando Antero de Quental.
Este escritor, autarca,
investigador criminal e professor falava no sarau cultural que encheu o grande
auditório do Colégio D. Diogo de Sousa, numa iniciativa do Departamento de
Português e Latim, enriquecido com música, dança, poesia, vídeo e teatro,
interpretados por professores e alunos.
A noite abriu com a
sonoridade do Ensemble do Colégio e o director da Escola confessou o orgulho
que sente com os “nossos professores, os nossos pais e os nossos alunos” na
construção de uma escola que “faz vibrar e sentir a beleza da cultura, da
dança, da música e da literatura e tem um cuidado especial com a Língua
portuguesa”.
O padre Cândido Sá
afirmou que este é “um momento de satisfação e de realização dos nossos alunos”
e agradeceu a presença do convidado da noite, Francisco Moita Flores.
O autor de novelas e
romances, além de professor e investigador na área criminal, alertou os pais e
jovens presentes que “não podemos perder tempo porque a vida é um bem escasso e
não há tempo para perder com coisas fúteis”.
A vida deve ser vivida
na “procura insistente da felicidade” que se conquista todos os dias “quando
realizámos obras e concretizamos os nossos sonhos”. Por isso, “saber e amar são
o único caminho para nos sentirmos em paz connosco” – assegurou Moita Flores.
Definindo-se como um
“desassossegado”, Moita Flores pediu aos jovens que “não percam tempo com
desencantos, desgostos, zangas e desarmonias” nesta caminhada em que “devemos
procurar a felicidade através do sofrimento, do trabalho, do estudo para
saborear depois o triunfo”.
“Se nos
demitirmos do trabalho e da dedicação, somos ultrapassados pelos que estão
menos desatentos ao essencial da vida” – alertou este grande admirador do Papa
Francisco que “tem o meu nome, o do meu pai, o do meu avô e o do meu filho”.
O escritor deve o gosto
de ler ao pai e o prazer de escrever ao seu professor de português porque só se
pode ser grande escritor se for grande leitor e “a nossa vida é um livro que
vamos e vão-nos folheando”.
Nesse sentido, a actual
crise económica e financeira “é a mais fácil de resolver. Já tivemos crises
piores mas agora vivemos na era da informática e a maior crise é outra:
“aceleramos o tempo e contraímos o espaço”.
“Ficamos sem tempo para o
fundamental: alimentar a relação afectiva com os outros; não há tempo para a
família, para o amor, para um abraço, para os beijos e quando queremos esse
tempo, já passou” – sublinhou o orador, arrancando palmas às centenas de
pessoas presentes.
“MERKEL É MAIS
POBRE QUE EU…”
Francisco Moita Flores
aflorou outro tema bem português: “a culpa é do outro e eu não tenho culpa de
nada do que acontece e nos acontece”.
Durão Barroso atribuiu a
tanga a Guterres, depois saiu e Santana Lopes culpou Barroso, Sócrates culpa o
antecessor e Passos Coelho e Gaspar dizem que a culpa é de Sócrates e o país
continua adiado - resumiu.
Portugal tem um bem
precioso para não ser uma pátria adiada: “Quando Merkel veio a Lisboa, eu olhei
para aquela figura que fala alemão e pensei: ela é mais pobre que eu. Eu falo
uma das línguas mais faladas do mundo. Ela já alguma vez imaginou este
património fabuloso que demos ao mundo, durante oito séculos, através da nossa
diáspora, em todo o mundo?”
Quanto vale isto? –
exclama o ex-autarca de Santarém, perguntando: “porque estamos tesos, não
prestamos para nada?”
O GOLO MAIS SABOROSO DA
MINHA VIDA
Amante de livros, da
pintura (capaz de chorar diante de “Nenúfares” do impressionista Claude Monet -
“e não me ajoelhei a rezar porque me podiam julgar maluco”-) e da música,
Francisco Moita Flores ri-se, como “sportinguista” com as celebrações dos
benfiquistas aos 91 minutos, a pedir cervejas e mais garrafas, a gritar
“campeões” e um “melão de todo o tamanho, ao minuto 92, com o golo do Porto”
que “foi o golo mais saboroso da minha vida”.
Depois explica-se: “Eu
não percebo porque se fica triste por uma coisa completamente fútil e vã. É o
tempo mais mal vivido e mais mal perdido da nossa vida. Por causa dos golos que
os outros marcam. Não são nossos”.
A terminar a sua
conversa com a prof. Andreia Lopes, Francisco Moita Flores deu duas notas ao
auditório: “os livros são os nossos maiores amigos e são o maior instrumento da
revolução para o futuro. Ensinem isto aos vossos amigos, filhos e netos”.
Citando Antero de
Quental, numa carta a um amigo seu, o escritor disse: “desculpa por não te
escrever há muito tempo, mas há uma cidade dos pensamentos onde todos os dias
te dou o meu abraço. Sem afectos – concluiu -, não vale a pena sermos grandes
sábios”.
“Convivi com
os mortos…
até perceber a ausência”
Um dos momentos
emocionantes da noite aconteceu quando Francisco Moita Flores falou da sua
carreira como investigador da Polícia Judiciária.
“Convivi com
os mortos a vida inteira. Conheço os mortos e o que lhes acontece a todas as
horas, após os dias e os meses. Dormíamos a sesta dentro de caixões, nos
intervalos do trabalho ou após o almoço. Para mim a morte era banal até ao dia
em que me telefonaram um dia, quando estava no cemitério de Macedo de
Cavaleiros” - narrou o escritor.
“A tua Mãe
morreu” – ouvi dizer do outro lado. Nunca a morte me batera à porta. Saí do
cemitério como se fosse mais uma morte. Ao passar pelo Porto ainda era o
cientista da morte mas quando cheguei a Coimbra senti que algo me incomodava
com violência. Aquela não era um dos meus mortos. Cheguei a Lisboa para colocar
uma gravata preta e encontrei a minha família toda a chorar. Aí, percebi o
profundo desgosto. Ali descobri o que era morrer”.
Para Francisco Moita
Flores foi preciso a morte da “minha mãe para eu, profissional da morte,
perceber que morrer é a ausência de um abraço, de um beijo, de um toque, de um
afago, dos passos; uma ausência tão definitiva. Eu estava despedaçado”.
Assim, conclui, “não
vale a pena viver nas vis arrogâncias porque o que importa é construir os
nossos afectos. A nossa crise mais profunda é esta”.