Wednesday, December 10, 2008

Versos de Camilo escritos em Braga



António da Costa Lopes
(profesor Jubilado da Universidade Católica Portuguesa)*.

*Como prometêramos, aquando do seu falecimento, no dia 28 de Setembro, publicámos hoje o último texto que este professor e antigo directordo Instituto Monsenhor Airosa nos ofereceu.

O texto que se segue aparecerá como apêndice, na próxima obra do autor, intitulada Ana Plácido, Camilo e Camilianismo em Braga (Do Convento da Conceição ao Instituto Monsenhor Airosa).

Na terceira parte (“Viver em duplicado” da obra da qual as presentes linhas são apêndice, transcrevi alguns versos de dois poemas que Camilo, ainda jovem, escreveu em Braga. Intitula-se o primeiro poema “Que tarde!…” e “Queres um amigo?” o segundo.

I
O soneto “Que tarde!”

1. Ao soneto se referem pelo menos cinco publicações, em artigos cujos autores o trasladam: “Um soneto inédito de Camilo”, de REBELO BARBOSA, na revista bracarense Novos e Velhos, 1.º ano, n.º 3, de 5.03.1897, pp.40-41; “Papéis velhos/Um soneto de Camilo do Paço de Palmeira”, de Aliquis (=António Luís VAZ), no Diário do Minho, de Braga, 18.11.1963; “Um soneto de Camilo escrito no Paço de Palmeira”, rovavelmente de Benjamim SALGADO, no Boletim da Casa de Camilo, de S.Miguel de Ceide, 2.ª série, n.ºs 4/5, de Julho-Dezembro de 1976, p.36 (Benjamim Salgado era então director deste Boletim).
Paço de Palmeira, Lisboa, Banco Português do Atlântico, 1983: na página 31 vem o soneto e na pág. 30 lê_se o texto seguinte, de Teresa MARTINS DE CARVALHO: “Graças à sua primeira publicação na evista Novos e Velhos, de 5 de Março de 1879 (sic), em Braga, o soneto ao lado pôde ser conservado até aos nossos dias. O grande novelista compô-lo – inspirado na beleza de Palmeira — quando hóspede do proprietário do Paço na época, Gaspar da Costa pereira de Vilhena Coutinho.
Camilo Castelo Branco/Poesias escritas em Braga”, de Henrique BARRETO NUNES, no Semanário Minho, de Braga, 1-06.1990.

2. Entre os cinco artigos agora mesmo citados, justo é de realçar o último e o primeiro: o derradeiro, até porque exibe também o poema “Queres um amigo?”; e sobretudo o primeiro, pelas seguintes razões:
Rebelo Barbosa, além de tornar possível à posteridade o conhecimento da poética produção de Camilo, informa-nos ainda sobre as circunstãncias do achamento do soneto de 1851: “é que nem o próprio autor mais se lembrou dele desde que, há 46 anos, no seu tempo de estudante, o escreveu em uma parede do mirante do Paço de Palmeira,quando ali se achou hospedado com D. João de Azevedo, a convite do seu velho amigo e dono da casa, o snr. Gaspar da Costa pereira de Vilhena Coutinho. (…) Era alí (…) que Camilo Castelo Branco se hospedava muitas vezes, na sua mocidade (…).
Nas paredes interiores do mirante que se ergue sobre o jardim e donde se desfruta um delisicoso panorama, encontram-se muitos versos de poetas avariados, coxos na forma, ocos de ideias e muitas banalidades com pretensões a conceitos filosóficos.
Fi entre essa aluvião de poetastros e prosadores que costumam ilustrar as paredes exteriores dos santuários e a casca dos cedros anosos das mataas que encontrámos ao lado de uns famosos versos de D. João de Azevedo, o soneto de Camilo, escrito a lápis pelo seu próprio punho e que (…) a muito custo copiámos, por se acharem as suas letras bastante apagadas com a acção do tempo.”

3. Eis agora o soneto, com grafia actualizada:
Que tarde!

Meu Deus! Que imenso amor nesta tristeza!
Que doçuras nos dás embalsamadas
Em perfumes do céu! Que musas fadas
Veeestiste aqui do alvor da Natureza!

Qual é que em ti não sente a alma acesa,
Ó Palmeira gentil, mas encantadas
Visões dum santo amor, quando inspiradas
De ti nascem paixões que a alma preza!

Quem foi que aqui não viu sorrir-lhe a vida
Nestes prados, além naquelas fontes
Que murmuram canções com voz carpida?

Oh! Vede-me estes céus! Vede estes montes!
Quem pode aqui viver que, a mente erguida,
Não vá curvar-se a Deus nos horizontes!


Paço de Palmeira

11 de Junho de 1851

4. Completando agora o que planeei redigir sobre estes versos, resta-me apresentar somente duas breves notas:
Primeira: Levado pela informação de Rebelo Barbosa acerca do exacto sítio em que ele encontrou o soneto de Camilo (“Nas paredes interiores do mirante que se ergue sobre o jardim e donde se desfruta um delicioso panorama”…) desloquei-me, há dois anos, ao Paço de Palmeira na companhia do dr. José da Costa Ferreira, meu antigo e distinto aluno, e hoje advogado e professor: ele e o seu irmão Adriano, que também lá compareceu, eram os melhores guias que eu podia encontrar, já que ali tinham passado muuitos anos da sua meninice e juventude.
O objectivo, porém, da minha pesquisa não foi alcançado: não encontramos vetsígio algum de qualquer palavra do soneto de 1851 — o que valha a verdade, pouco ou nada me surpreendeu…
Segunda: Ao transcrever alguns versos do soneto na referida terceira parte (“Viver em duplicado”), procedi em função de um tema aí versado n— a religiosidade do autor —, e de uma circunstância de tempo na vida de Camilo, nos anos lectivos de 1850-1851 e 1851-1852, ele foi estudante de Teologia.
E o que nesta segunda nota fica dito vale também relativamente ao poema “Queres um amigo?”, escrito em Braga dois dias depois da data do soneto.

O poema “Queres um amigo?”

1. As sete sextilhas deste poema foram incluídas em ,pelo menos, duas publicações posteriores, à data do original manuscrito (13.06.1851) — a saber; na “Miscelânea poética/Jornal de poesias, 2.ª colecção, Porto… Loja de F. G. da Fonseca, 1852, pp. 43-44, e nas Poesias dispersas, do próprio Camilo, Porto: Tipografia particular de A. D. e Sousa Reis, 1913, pp. 155-156.
Daquele original pode o leitor ver aqui a imagem, graças á boa vontade e gentileza, que agradeço, do senhor Nuno Augusto Alcoforado Faria Roby, Conde de Vila Pouca, actual proprietário da Casa de Val-Flores (ou de Infias). Nesta casa, efectivamente, se encontram as duas páginas do manuscrito poema em livro fortemente encadernado cuja capa exibe o termo Álbum. No livro se podem ver, além das estrofes de Camilo, vários originais de outros autores.
(Moreira das Neves no esclarecedor artigo “Sobre as folhas de um álbum”, publicado no semanário portuense “A Ordem, de 19.10.1978, assim se exprime acerca dos álbuns: “tornou-se uma autêntica mania, de 1850 aos fins do ´seculo XIX. “Um dos autores nesse artigo mencionados e extractados é, precisamente, Camilo.)

2. Os dizeres dos versos, nas Poesias dispersas, são practicamente os mesmos da Miscelâne apoética, da qual foram extraídos.
Por isso, basta comparar 0 texto manuscrito de 1851 com o das páginas 43-44 da Miscelânea (1852): Não aparece na Miscelânea o título do poema (“Queres um amigo?”); e, em lugar do título, vem a indicação seguinte: “No álbum de J. B. pacheco Pereira”.
Ainda na Miscelânea, também não é dado a conhecer o nome do autor do poema, nem o lugar (Braga) e a data em que as sextilhas foram escritas.
(O Dr. José Borges Pacheco Pereira, em cujo álbum Camilo escreveu as sete estrofes, morreu solteiro e foi irmão do então proprietário da Casa de Val-Flores — João Borges Pacheco Pereira, trisavô do actual e já referido proprietário da mesma. Ainda acerca do dr. José Borges Pacheco pereira, acrescento que ele exerceu, entre outros cargos, o de Governador civil de Beja, e dedicou-se também á literatura; é da sua autoria, por exemplo, o soneto que na Miscelânea poética se segue imediatamente ao dito poema de Camilo)
Especialmente dignas de nota são as diferenças — não muitas — entre o original manuscrito e a Miscelânea, quanto ao próprio texto dos versos. A diferença maior é a do último verso da primeira estrofe: enquanto no manuscrito se lê “As ilusões que perdi…”, outro é o verso na Miscelânea: “Aos encantos duma houri!…”

3. Num dos parágrafos do texto com o qual este apêndice tem relação, transcrevi os três primeiros versos da penúltima sextilha:

Tenho crenças — são no Eterno…
Só a Ele um culto interno
Lhe consagra o coração.


Quer nas Poesias dispersas, quer na Miscelânea poética, o pronome pessoal do segundo destes três versos tem inicial minúscula: ele.
Quem, olhando para a respectiva gravura, atentar no modo como o autor escreveu pelo seu próprio punho esse pronome e também a palavra Eterno (=Deus) do verso anterior, verá que, ao deixar escritos no álbum estes vocábulos, Camilo fez mais do que escrever Ele e Eterno com maiúsculas iniciais: verá que, entre todas as palavras do poema, só estas duas, além de Deus na última estrofe, é que são avantajadas.

4. Que os versos comentados nas precedentes linhas têm a ver com a religiosidade de Camilo, já acima ficou de algum modo anunciado. Mas atmbém a cultura religiosa do grande escritor merece aqui ser lembrada, a propósito do verso “Aos encantos duma Houri!…” que na Miscelânea poética substituiu “Às ilusões que perdi!…”, na primeira estância do poema.
(Na 8.ª edição (1871) da Divindade de Jesus e Tradição apostólica, de Camilo, que citarei pouco adiante, lê-se “huri”; mas ainda em 1903, na 2.ª edição da mesma editora, p.128, aparece “houri”.

Sobre o que houri/huri significa, falem os dicionários:

O novo Dicionário francês-português, de José da Fonseca (Parias,1872), acerca da palavra francesa houri, diz: “houri (mulher do paraíso de Maomé)”. Por sua vez, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva, no volume V dda 10.ª edição (Lisboa, 1953), atribui á palavra huri os seguintes significados: “Mulher formosa do paraíso de mafoma, destinada na vida futura a desposar o muçulmano fiel ao culto.Fig. Mulher muito bonita.”

Como em português, também no alemão se escreve huri (e também no italiano, mas sem h). No inglês, como no francês: houri.
A propósito da grafia adoptada pelo autor do poema na Miscelânea poética — houri, como em francês — recorto a seguinte observação de Mário Martins: “Na sua apologética, Camilo Castelo Branco radica sobretudo na escola francesa e dela se alimenta. Pode mesmo dizer-se que, de autores modernos, afora Strauss e César Canty, cita quase só autores franceses ou através deles.”

Estas palavras do abalizado jesuíta e académico, leio-as na sua “Nota preliminar” escrita para a 8.ª edição da Divindade de Jesus e Tradição Apostólica (Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1971, p. V). E é precisamente nesta edição da obra do grande romancista que novamente aparece o termo huri, agora em contexto apologético religioso cristão — assunto para as linhas com que vou finalizar este apêndice.

5. Eis,primeiro, dois introdutórios parágrafos de Mário Martins (“Nota preliminar”, p. X) acerca do trecho apologético da Divindade de Jesus:
“Falamos da lucidez de Camilo, ao menos na escolha dos argumentos e da sua expressão. O milagre histórico da conversão do mundo civilizado, por pescadores anónimos e qauase todos de medíocre categoria humana, podia ser contraditado pela fulminante expansão dos muçulmanos, levada a cabo por um condutor de camelos e seus discípulos.

O caso, porém, é diverso no cristianismo!, exclama Camilo. Maomé prometia “muitas mulheres na terra e muitas huris no céu”. E em caso de resistência, o alfange resolvia a questão, cortando cabeças. Assim era fácil de converter! Porém, os apóstolos e os mártires não cortavam cabeças. Deixaram que lhas cortassem. E não prometiam mulheres”.

Por fim, Camilo, na Divindade de Jesus (pp.123-124): “Inventou-se Maomé enviado de Deus. Acreditou-se entre milhões de homens.
Dava largas às paixões, pábulo infinito às organizações ardentes do seu clima: muitas mulheres na terra, muitas huris no céu. E, se ainda assim, algum descrente se dispensava duma bem-aventurança abonada pelo gozo infinito da infinita contemplação de mulheres formosas, o alfange tirava-lhe a alma pelo pescoço, e à força lha remetia para o paraíso.
Ora os discípulos de Jesus morriam.

“Pedro e Paulo, e vós gloriosos apóstolos, generosos santos e ilustres mártires! Porventura sofrestes tamanhos trabalhos para enganar os homens? A ressurreição de Cristo, que invocais incessanetemente, chamando terra e céu por testemunhas, seria em vossa boca uma mentira odiosa, uma ingóbil perfídia? Quando morríeis por Cristo ressuscitado, sabíeis que morríeis por um impostor?”.

Braga, Lar Conde de Agrolongo, 2008

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